Edward Magro | 03/09/2025
O Tarcísio, como se diz lá no Espigão, “pode até ser burro, mas besta ele não é”. O que ele faz, nos palanques em que se exibe e nas manchetes que fabrica, transmitindo a imagem e a sensação de que luta pela anistia de Bolsonaro, não passa de um bailado manco, um tango sem bandoneón, um baião sem sanfona, um minueto sem orquestra. É fogo-fátuo que arde sem queimar, que se mostra sem existir.
Ele sabe perfeitamente que não há anistia possível para Bolsonaro, pois qualquer lei nesse sentido encontraria, sem demora, a lata de lixo da inconstitucionalidade. Ainda assim, Tarcísio continua a dançar. E por que dança Tarcísio? Porque sabe que precisa ser visto dançando. Sua coreografia não pretende mover montanhas, apenas mover olhares. É um exercício de apresentação, uma retórica em movimento, uma encenação de passos que não buscam resultado algum, mas apenas reconhecimento dentro do campo fascista.
O que ele deseja é simples e direto: que o fascistão do interior de São Paulo, o nazistão de Brusque e o nazissionista da Faria Lima o vejam em cena e digam, satisfeitos: “ali está o nosso novo líder, suando a camisa, dançando por nós”. Nada além disso. Só isso, e apenas isso.
Tarcísio tem plena consciência, e certamente saboreia em privado, que Bolsonaro já não é apenas um cadáver político. É um corpo em dissolução, um restolho que apodrece em público, que se desmancha em tempo real nas transmissões da TV Justiça, que perde substância como coisa que se desfaz entre os dedos. O capitão, outrora figura de comando, é hoje espetáculo de decomposição.
E o único desejo de Tarcísio é empurrá-lo ainda mais para o abismo, enterrá-lo no ponto mais fundo que conseguir, de preferência na escuridão sem retorno de uma fossa Mariana, onde nem mesmo a memória encontra sobrevida, onde a pressão esmagadora dissolve ossos, palavras e lembranças até restar apenas o silêncio mineral da profundidade.
Onde repousa, afinal, a não-bestice de Tarcísio?
Talvez na percepção íntima do seu próprio ethos, nesse instinto frio que lhe permite compreender que peça é, e qual seu papel no mecanismo em que se move.
O fascismo brasileiro tem natureza singular, distinta de todas as demais. Ao contrário dos fascismos mundo afora, não produz lealdade duradoura a um chefe, pois aqui o líder nunca é mais do que um hospedeiro provisório. Nem mesmo Plínio Salgado, lembrado por alguns como patriarca da vertente nacional, conseguiu sustentar por muito tempo a devoção dos seus seguidores. O fascismo em terras tropicais é criatura mais velha do que o nome que lhe foi dado, mais profundo do que o rótulo que lhe colaram, nascido do autoritarismo que vertebrou o país e da violência que organizou nossas relações sociais. Suas lideranças são efêmeras, máscaras descartáveis que se alternam no palco e, a cada geração, encontram um intérprete passageiro, capaz apenas de dar forma provisória ao que permanece latente no corpo da nação.
Plínio Salgado arrebatou uma classe média órfã do escravagismo com retórica adornada, frases inteiras e verniz literário. Bolsonaro, em contraste, arrastou a mesma massa com frases truncadas, grunhidos e improvisos. Salgado, ao contrário do capitão, sabia ler, escrever, interpretar um pequeno texto, arriscar-se em poesias ruins — mas ainda assim poesias — e, pasme, era capaz de compor frases completas, com sujeito e predicado. Apesar da diferença abissal no plano intelectual e cognitivo, ambos se encontraram no mesmo ponto de confluência: o ódio visceral à igualdade, a recusa da divisão justa da riqueza socialmente produzida, a rejeição até mesmo do gesto elementar de partilhar.
É nesse solo encharcado de ressentimento que Tarcísio lança suas sementes. É para um jardim de rancor que ele dança, e é dançando nesse campo rançoso que deseja ser visto. Sabe que não precisa disputar os órfãos de Bolsonaro, pois a morte política do capitão obriga o surgimento de outro condottiere. O terreno, entretanto, continua fértil, saturado de ódios e medos, pronto para ser lavrado por quem tiver a ousadia de empunhar o arado.
Sua dança em torno da anistia é, portanto, apenas uma cena. Não há convicção, não há crença. Há sobretudo a certeza da derrota jurídica. A encenação só tem como fim provar que sabe vestir o traje completo do fascismo e executar seus passos diante do olhar guloso de uma plateia sedenta. Ele finge lutar, e nesse fingimento se revela candidato a ocupar o lugar do podre que apodrece podremente, de tornozeleira eletrônica e camisa de time de futebol comprada no camelódromo da Uruguaiana.
Aqui se revela uma lição essencial: nenhum fascista deve solidariedade a outro fascista. Entre eles não existe a gramática da fidelidade. O que impera é a lógica da substituição, o cálculo frio, a faca sempre escondida sob o manto. Tarcísio não deseja salvar Bolsonaro; deseja apenas soterrá-lo com todas as pedras que encontrar, reduzir-lhe a memória ao silêncio mineral das profundezas.
E se se exibe com gestos de técnico aplicado, e veste-se de cristão resignado, é apenas para ocultar o que realmente deseja. O que sonha é cavalgar a mula do fascismo, essa besta de carga que transporta, desde a fundação do país, os pesos do autoritarismo e da violência social. Sonha fazê-lo como líder máximo, com a sela inteiramente sua, sem precisar dividi-la com o ex-capitão, sem compartilhar com ninguém. Quer o Brasil para si, para si mesmo. Este é o sonho do fáscio: feixes entrelaçados sustentando o machado-cabeçorra do “cara de areia mijada”.
Tarcísio não governa, não vence, não manda. Ele dança. Baila. Apenas dança e baila. Bailando vazio, finge liderança para que o fascismo o abrace, sabendo que o único poder que possui é o da aparência. E é nesse gesto — curto, transparente, inteiramente teatral — que se revela o seu domínio real: a arte de enganar, de ser visto como líder sem nunca tê-lo sido, de ocupar, como impostor, o espaço que o poder concede por ilusão. Mas, para nós, o que importa é ficarmos atentos, com a clareza de que, nessa dança, ele se revela inteiro em sua falsidade e, portanto, transparente para todos que sabem ler o teatro do autoritarismo. Afinal, na dança do impostor, a autoridade é só aparência.

Como sempre seu texto é claro, perfeito, fundamental para nos aprofundarmos e entendermos o se passa em nesso país.
Virei fã de carteirinha.
Muito bom 😊
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