Edward Magro | 08/09/2025
Acabo de ler os nossos portais hegemônicos sobre o encontro dos BRICS hoje.
Espremendo tudo, misturando boa porção do meu suco gástrico com um tanto generoso de minha bile, e depurando o caldo em peneira grossa para poder escoar, sobrou como suco a habitual superficialidade e a previsível má vontade deles com os BRICS — e, em particular, com Lula. Palavras rasas, relatos planos, como se todo gesto coletivo e cada gesto político pudessem ser reduzidos a manchetes mecânicas.
Um tanto quanto indignado — não tenho mais fígado para me indignar em profundidade — rascunhei algumas linhas sobre o que compreendi, ou ao menos sobre o que me parece ter realmente acontecido na reunião de hoje. Faço isso porque não é possível engolir, de forma bovina, o que esses portais insistem em nos empurrar garganta abaixo.
O que ocorreu foi mais do que uma reunião virtual: foi a construção deliberada de um gesto coletivo, medido e firme, em meio a um cenário mundial convulsionado. Cada palavra, cada silenciamento, cada alinhamento dizia mais do que qualquer manchete apressada ousaria registrar.
A reunião desta segunda-feira não se limitou a juntar chefes de Estado em uma tela. Expôs, de forma clara, a tentativa de estruturar uma alternativa geopolítica em meio a tensões cada vez mais intensas. Convocado pelo Brasil, o encontro teve no presidente Lula o fio condutor, enquanto Xi Jinping e Vladimir Putin se integraram ao compasso, compondo uma narrativa convergente que raramente se expressa com tanta nitidez.
A guerra tarifária, intensificada por Donald Trump desde sua chegada à Casa Branca, foi o primeiro tema a emergir. Lula não poupou palavras ao classificá-la como “chantagem tarifária”, denunciando que os princípios do livre-comércio foram desfigurados pelo uso de tarifas como arma política. Xi Jinping, em tom mais contido, descreveu o unilateralismo e o protecionismo como males que corroem instituições e enfraquecem a economia global. Ao costurar sua crítica à defesa da Nova Rota da Seda, o líder chinês apresentou seu projeto como contraponto a um cenário em que fronteiras comerciais se erguem com violência crescente.
Da economia, a conversa deslizou para o Caribe. Lula advertiu que a presença de forças navais norte-americanas na região, sob o pretexto do combate ao narcotráfico, representa risco de intervenção e de ruptura com o direito internacional. A lembrança da Venezuela, sempre vulnerável a tentativas de ingerência externa, pairou sobre o discurso. Para Brasília, aceitar esse expediente seria legitimar um retorno a velhas práticas coloniais disfarçadas de operações de segurança.
No caso da Ucrânia, Lula optou por uma linguagem prudente, mas incisiva: defendeu saídas realistas que respeitem as preocupações de todas as partes. Ao mencionar o encontro entre Trump e Putin no Alasca, sinalizou que até gestos limitados de diálogo podem abrir caminhos para o fim de uma guerra que já se converteu em desgaste humano e político. Putin reforçou a posição, afirmando que não haverá paz europeia duradoura enquanto a Rússia for tratada como intrusa em sua própria vizinhança.
O encontro não se encerrou sem referência a Gaza. Lula e Xi, cada um a seu modo, apontaram para a urgência de interromper um conflito que já adquiriu proporções humanitárias irreversíveis. A menção ao genocídio palestino, ainda que em termos discretos, projetou o BRICS como parte do coro internacional que insiste em cessar-fogo e responsabilização.
Mais do que a soma de discursos, o encontro delineou uma gramática própria. Ao entrelaçar comércio, segurança e humanidade, Lula, Xi e Putin imprimiram no BRICS um ritmo de bloco que não se limita a resistir ao unilateralismo, mas se apresenta como autor de novas páginas na ordem mundial. Em tempos de narrativas fragmentadas, a clareza dessa convergência soou como raro ato de construção política — um gesto que a imprensa apressada talvez não capte, mas que, no tabuleiro global, pode pesar como um marco.
