Keir Starmer

Enfim, a cumplicidade em ruínas

Edward Magro | 29/07/2025

Por décadas, a civilização ocidental se submeteu, com uma passividade humilhante, à chantagem moral imposta pelos governos de Israel. De Paris a Washington, de Berlim a Londres, o horror ao antissemitismo serviu, em não raras ocasiões, como biombo para a conivência com os crimes do sionismo de Estado. Essa longa noite de cumplicidade, felizmente, começa a ruir. Tardiamente, é verdade; mas ruir, afinal.

Em entrevista coletiva transmitida em tempo real, o primeiro-ministro britânico, Keir Starmer, anunciou que, a menos que Israel cesse imediatamente o massacre em Gaza, o Reino Unido reconhecerá o Estado da Palestina já em setembro, antes da Assembleia Geral da ONU. O gesto britânico não constitui apenas um ato diplomático: representa o indício de que a história cansou da mentira israelense. É, portanto, um “basta” de imensa potência, sobretudo porque o Israel sionista que hoje existe é, em grande medida, fruto direto da ação colonial britânica na Palestina.

Foi o presidente Luiz Inácio Lula da Silva quem teve a coragem inaugural de dizer, em alto e bom som, o que muitos apenas murmuravam pelos corredores da ONU: Israel está promovendo o holocausto palestino. A declaração foi recebida com as costumeiras notas de repúdio, manifestações ritualizadas de uma indignação covarde, sempre mais chocadas com as palavras do que com as imagens de crianças esfareladas por bombas. Lula rasgou o véu do tabu e, ao fazê-lo, ofereceu autorização moral para que outros líderes saíssem do torpor. Como num dominó de lucidez, empurrou Emmanuel Macron, que, por sua vez, impulsionou Keir Starmer. O resultado foi o gesto britânico de rara ousadia geopolítica: reconhecer a Palestina como Estado soberano.

Não se trata de retórica. O que ocorre hoje em Gaza não pode ser chamado de “conflito”. Trata-se de uma matança metódica, industrial, deliberada. Oficialmente, mais de 60 mil palestinos foram mortos; em números reais, ultrapassam os 100 mil — quase metade, mulheres e crianças. Há fome sistemática, impedimento calculado de ajuda humanitária, colapso hospitalar, apagão total de água e eletricidade. O World Food Programme classifica Gaza como o pior desastre alimentar do século. A ONU, sem recorrer a eufemismos, descreve o cenário como uma “fome de pior caso”.

E ainda há quem insinue que empregar a palavra “genocídio” seria exagero? Genocídio é um termo jurídico, técnico. E o que está sendo perpetrado pelo governo nazissionista de Benjamin Netanyahu configura genocídio sob definição legal, histórica e criminológica. Há intenção, há alvo étnico deliberado, há método reiterativo — e há, sobretudo, uma política de Estado meticulosamente arquitetada para a aniquilação. Trata-se de um nazismo à moda israelense: mais frio, mais calculista, mais impiedoso, mais cruel que o alemão, pois executado sob os holofotes do mundo, transmitido em tempo real, fotografado, instagramado, tudo arremessado em nossos rostos com a frieza obscena de quem não carrega sequer o disfarce do constrangimento.

Essa realidade já não pode ser ocultada. Israel encontra-se hoje sob o comando de uma aliança de fanáticos, corruptos — profundamente corruptos, extremamente corruptos —, sanguinários e carniceiros. Netanyahu e Israel Katz personificam um sionismo degenerado, apartado das tradições humanistas do judaísmo e entregue a um projeto colonial supremacista. Seu regime, nazissionista por vocação e estrutura, transformou o extermínio do povo palestino em doutrina oficial. Netanyahu não busca segurança para Israel, mas, sim, supremacia territorial; não busca paz, exige submissão. Katz, seu Himmler doméstico, é o ventríloquo da canalhice institucional israelense, repetindo, com disciplina nazissionista, o jargão cínico segundo o qual qualquer crítica ao Estado israelense equivaleria a uma “recompensa ao Hamas”. Trata-se de um palhaço sem talento e sem alma: depois de exterminar 100 mil civis, bloquear alimentos e arrasar bairros inteiros, Tel Aviv ainda se apresenta como paladina da paz e da contenção.

A reação oficial de Israel ao anúncio britânico foi, como era de se esperar, um monumento à vileza. Segundo o discurso automático do nazissionismo, o reconhecimento da Palestina “prejudica os esforços por um cessar-fogo”. Eis o paroxismo da impostura. O país que impede sistematicamente a entrada de ajuda humanitária, que rejeita todas as propostas de paz que incluam limites à sua ocupação, que rasga o direito internacional com a desenvoltura de um serial killer diplomático — esse país tem a audácia de acusar os outros de estarem “atrapalhando” a paz. É como se um incendiário culpasse os bombeiros pelo avanço das chamas.

O tempo da mentira, porém, chegou ao fim. O Reino Unido, com seu gesto, coloca-se do lado certo da história. Ainda que tardiamente, ainda que movida por ambiguidades estratégicas, a atitude britânica representa uma inflexão. Que se critique, se necessário, o uso da diplomacia como moeda de troca — pois reconhecer a Palestina não deveria depender de cessar-fogos condicionais. Ainda assim, trata-se de um avanço. Pela primeira vez em anos, Israel enfrenta a possibilidade concreta de sofrer um custo político. E, na gramática da política internacional, custo é uma linguagem que governos compreendem.

A tarefa, agora, consiste em internacionalizar essa pressão e romper o manto protetor que isenta Israel de prestar contas por seus crimes. Netanyahu e Katz devem ser levados ao Tribunal Penal Internacional. Não como gesto simbólico, mas como imperativo moral e jurídico. Crimes de guerra, limpeza étnica, castigo coletivo, fome como arma — tudo isso está fartamente documentado. Resta apenas o que jamais deveria faltar ao mundo civilizado: coragem para colocar na cadeia os nazissionistas.

Apesar da devastação, há esperança. Esperança não como sonho ingênuo, mas como possibilidade racional. Os pilares do apartheid israelense começam a trincar. O reconhecimento da Palestina por mais de 140 países, o desgaste crescente de Tel Aviv no cenário global, a erosão da impunidade diplomática; tudo indica que a maré, enfim, começa a mudar. Que venha lenta, que venha tardia, mas que venha. Pois um mundo em que se assassinam crianças com mísseis, se bombardeiam hospitais e se transforma uma faixa de terra em campo de extermínio não merece perdurar senão para se transformar. E, ao fim e ao cabo, ainda é possível.

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  1. Carlos Magro

    Ainda sinto distante a concretização desta nação Palestina, infelizmente.