Entre escombros e esperança, ressuscitamos

Menina com bandeira

Entre escombros e esperança, ressuscitamos

26/07/2025

Foi publicado hoje o relatório 25 Years of Autocratization – Democracy Trumped?, elaborado pelo Instituto Variedades de Democracia (V-Dem), sediado na Universidade de Gotemburgo, que nos traz uma notícia auspiciosa: a democracia brasileira, após anos de erosão institucional, experimenta um processo de recuperação singular. Enquanto boa parte do mundo afunda no autoritarismo, o Brasil desponta como exceção.

O estudo, referência mundial sobre o estado das democracias, apresenta dados inquietantes: 72% da população global vive sob regimes autocráticos e, pela primeira vez em meio século, há mais autocracias do que democracias no planeta. A eleição, isoladamente, deixou de ser critério suficiente para integrar o círculo das nações democráticas. No cenário devastador delineado pelo relatório — em que eleições são convertidas em rituais de legitimação e tribunais esvaziados de substância — o Brasil figura como linha de resistência incomum, enfrentando cotidianamente o desafio de manter, mesmo que em ritmo lento, o processo de reconstrução democrática e o necessário isolamento político do fascismo doméstico.

Do ponto de vista da gestão da crise democrática, é notável — ou melhor, épico — o papel desempenhado pelo presidente Lula, cuja prisão arbitrária foi o marco iniciático da rápida degradação institucional brasileira. Preso por um conluio jurídico-midiático de viés autoritário — a Lava Jato, quadrilha conduzida por um juiz parcial e por procuradores que combinavam zelo messiânico com ambições pecuniárias — esse grupo, instrumentalizado pelo Departamento de Justiça dos Estados Unidos (DoJ), preparou o terreno para o golpe parlamentar de 2016, protagonizado por Michel Temer com o respaldo de setores militares, e culminou na eleição de Jair Bolsonaro. Convém recordar que esse pleito, profundamente viciado, ocorreu sob a exclusão forçada de Lula, contrariando recomendação expressa do Conselho de Direitos Humanos das Nações Unidas (UNHRC, Genebra).

Com o retorno de Lula, iniciou-se a reconstrução institucional do país. O novo governo assumiu sob o espectro de um levante golpista, perpetrado apenas oito dias após a posse. A habilidade política de Lula foi determinante: articulou uma aliança entre os três Poderes e angariou o apoio de governadores para restaurar a ordem constitucional. Essa façanha, longe de se dar em terreno fértil, ocorreu em meio a um ambiente ainda contaminado por forças que, embora derrotadas eleitoralmente, seguem empenhadas em corroer os alicerces da República.

Essa inflexão democrática brasileira ocorre num mundo em mutação, cuja transfiguração mais preocupante foi a eleição de Donald Trump nos Estados Unidos — a mais poderosa das democracias ocidentais. O V-Dem descreve o quadro norte-americano como de lenta e deliberada decomposição e projeta que os EUA deixem de ser uma democracia já em 2026. Trump, arquétipo da autocratização por vias eleitorais, não apenas instigou um ataque ao Capitólio como normalizou o inaceitável sob o disfarce das instituições. O mais alarmante, porém, não é o que já fez, mas o que se lhe permite continuar fazendo: sua nova investidura presidencial é tratada com pasmosa trivialidade cívica. O trumpismo deixou de ser ameaça para tornar-se sistema — sustentado por negacionismo, extremismo e um establishment contaminado por um ideário delirante, movido por cobiça financeira e ressentimento. Trump, criminoso condenado e sentenciado em três processos diferentes, que em qualquer país saudável estaria preso, ocupa hoje, impune, o Salão Oval de uma nação politicamente adoentada.

A desinformação, fertilizada por plataformas digitais e amplificada por algoritmos cúmplices — os mesmos que elegeram Trump — fez da Argentina sua mais recente vítima. Javier Milei, eleito em 2023, lidera um projeto neofascista de inspiração neofeudalista. Governa por decretos, ignora o Parlamento, hostiliza o Judiciário e transforma a presidência em palanque permanente para uma guerra ideológica contra os próprios fundamentos da institucionalidade. Sua retórica incendiária e o desprezo pelas mediações republicanas revelam uma corrosão institucional tão estrondosa quanto eficaz. Vítima de alucinações, persegue desde adversários políticos até os cozinheiros da Casa Rosada. A democracia argentina, tecnicamente viva, respira por aparelhos.

No Brasil, por contraste, a eleição de Lula em 2022 representou um ponto de inflexão — ainda que longe de qualquer ilusão redentora. O Democracy Report 2025 continua classificando o país como uma “autocracia eleitoral”, rótulo incômodo, mas justificável. O ciclo de desmonte iniciado em 2016 e radicalizado sob Bolsonaro deixou marcas profundas. A tentativa de golpe em 8 de janeiro de 2023 escancarou as fissuras institucionais: forças de segurança hesitantes, militares coniventes, poderes acuados. A “inércia autoritária”, como define o relatório, permanece entranhada no Estado, alimentada por um ecossistema digital tóxico e por um bolsonarismo decapitado, mas persistentemente ativo.

Ainda assim, o Brasil é hoje um símbolo raro de reversão democrática num mundo marcado pela regressão institucional. A eleição de Lula, viabilizada por uma aliança improvável, sustentada por uma sociedade civil vigilante e por um Judiciário atuante, foi alicerce concreto dessa reconstrução. Não se trata de louvor ideológico, mas de constatação analítica: o V-Dem reconhece em sua liderança um ponto de inflexão. Todavia, o processo permanece frágil. O bolsonarismo segue operando nos subterrâneos da política, o Congresso resiste à agenda reformista e a imprensa, movida por interesses econômicos — e também vítima de campanhas de intimidação — hesita em exercer plenamente sua função crítica, que, diga-se, nunca cumpriu em nenhum momento de nossa história. Lula, com sua autoridade internacional e notável habilidade política, não lidera apenas um governo — encarna um esforço histórico de restauração democrática num país que, por tempo demais, naturalizou o estado de exceção.

Comparados, Brasil, Estados Unidos e Argentina ilustram três fases distintas da degradação democrática contemporânea. Os EUA representam a erosão pelo alto: elites jurídicas e políticas que, em nome da estabilidade, normalizam o intolerável. A Argentina exemplifica a corrosão pela base: o ressentimento social convertido em culto destrutivo. O Brasil, com todas as suas contradições, ensaia uma reversão. Enquanto Trump desfila impune e Milei governa por decreto, Lula conduz, sob vigilância constante, o desafio de reconstruir o que foi esfacelado. Se vivemos uma era de democracias performáticas e autocracias disfarçadas, o Brasil, com sua crueza tropical, torna-se o laboratório da hipótese — improvável, mas necessária — de que a democracia pode, sim, renascer dos escombros.

O relatório do V-Dem é um alerta sereno, porém implacável: a democracia requer vigilância — não contemplativa, mas ativa. Com a aproximação das eleições de 2026, e com a democracia brasileira ainda em convalescença, cresce o risco de nova captura por forças reacionárias disfarçadas de moralismo cívico. Não bastará reeleger Lula. Será imperativo eleger uma maioria congressual comprometida com a democracia — não com sua caricatura. Mais que um pleito, 2026 será um referendo existencial sobre o destino político do país. E, desta vez, a História pode não conceder novas indulgências.

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