Edward Magro | 05/09/2025
O capitalismo contemporâneo não se limita a organizar mercados ou fluxos de riqueza: ele se infiltra na tessitura delicada da vida, no sopro íntimo do desejo, nas tramas invisíveis que sustentam nossas relações. Mais que isso, é o parteiro do nosso advento, o gerente das nossas capacidades produtivas, usurpador silencioso de nossas vidas e, por fim, coveiro das nossas existências. Sempre me pergunto se, em algum momento, ele atuou de maneira diferente. Sempre me vem à lembrança a exploração infantil desde seu surgimento na Inglaterra, prolongada por mais de um século. O veredito segue sendo sempre o mesmo: nunca se tratou de outra coisa senão violência estruturada. Mais ainda: a vida me mostrou que essa violência não é apenas concreta; carrega também uma dimensão psíquica.
Gilles Dostaler e Bernard Maris — este último morto no massacre do Charlie Hebdo — propuseram em “Capitalismo e Pulsão de Morte” que o capitalismo moderno é impulsionado por uma energia destrutiva: a pulsão de morte freudiana. Pulsão manifesta na busca insaciável pelo lucro, na financeirização consignada de nossas vidas, na transformação da natureza em objetos supérfluos de consumo e na devastação inclemente do ambiente social. Pulsão revelada em um modelo econômico que sacrifica o bem-estar coletivo e a própria sustentabilidade do planeta em nome da acumulação incessante. Pulsão que se alimenta e é alimentada pelo narcisismo, alienação e desigualdade. Pulsão configurada em uma “pedagogia da catástrofe”, que transforma a vida em matéria-prima de sua voracidade e ameaça a continuidade da experiência humana sobre a Terra. Pulsão que é a morte viva de nós todos, que troca vidas pela acumulação de capital, aos olhos do capitalista, a única instância que distingue sua existência da miséria alheia que o cerca.
Semelhante e desolador vaticínio, presente em “Mil Platôs” de Deleuze e Guattari, descreve o capitalismo como máquina que dissolve continuamente fronteiras, normas e formas de vida, instaurando linhas de fuga. À primeira vista, elas parecem promessas de liberdade, mas muitas vezes conduzem à paranoia, ao fascismo ou à autodestruição. O capitalismo possui a habilidade singular de absorver fluxos de desejo e criação, transformando-os em códigos de mercadoria e controle. O que poderia ser potência vital e emancipadora é recodificado em repetição exaustiva, consumo compulsivo e esvaziamento social e subjetivo.
Durante muito tempo, essa pulsão de morte parecia uma abstração filosófica, confinada a debates acadêmicos e ao “esquerdismo francês”, sobretudo. Mas, em 2020, a suspeita filosófica se tornou certeza científica com a publicação de “Deaths of Despair and the Future of Capitalism“, obra que divulga ampla pesquisa conduzida por Anne Case e Angus Deaton, Nobel de Economia de 2015. A dupla demonstrou que, nos Estados Unidos, a população de adultos brancos não hispânicos de meia-idade e sem diploma universitário vivenciou uma ascensão brutal de suicídios, overdoses de drogas e doenças hepáticas relacionadas ao álcool. Utilizando bases de dados oficiais, abrangendo o período entre 1999 e 2017, cruzaram informações sobre mortalidade com indicadores socioeconômicos e revelaram que a ausência de educação formal não é apenas um detalhe no currículo, mas um ponto de virada capaz de destruir vidas e pulverizar existências; não é apenas um dado estatístico, mas um catalisador de desespero estrutural.
Entre 1999 e 2017, essas “mortes por desespero” mais que dobraram, tornando palpável o colapso da dignidade social e da subjetividade que a filosofia já antevia. Suicídios, overdoses de opioides e doenças hepáticas compartilham uma raiz comum: precarização do trabalho, isolamento social, financeirização da dor e mercantilização do cuidado. O sofrimento deixa de ser individual: torna-se corpo social, evidência concreta de um sistema que organiza não apenas a riqueza, mas a morte.
Nos anos 2010, desde a Coreia do Sul, máquina voraz de esmagar asiáticos em favor da economia estadunidense, Byung-Chul Han capturou e deu corpo, em “Sociedade do Cansaço“, à intensidade silenciosa dessa destruição. Mostrou como o neoliberalismo exige do indivíduo uma performance infinita, uma autossuperação sem horizonte, que termina no colapso. Reduzido a gestor de si mesmo, o sujeito neoliberal adoece internamente: o fracasso deixa de vir de fora e se torna íntimo, insuportavelmente pessoal. Nessa apropriação subjetiva da derrota, a pulsão de morte encontra seu caminho mais cruel: a culpa por não corresponder a padrões inalcançáveis transforma-se, muitas vezes, em autodestruição.
É aqui que filosofia, sociologia e psicologia se encontram para advertir: o capitalismo não apenas produz desigualdades; dissolve o sentido da vida em comunidades inteiras. Nos Estados Unidos, a ausência de um sistema de saúde universal agravou a catástrofe. A dor, em vez de ser acolhida, foi mercantilizada; a solidão, em vez de ser cuidada, explorada. Hospitais e farmacêuticas acumularam lucros enquanto milhões perdiam empregos, status e pertencimento. O tecido social se esgarçou, e o desespero se tornou epidêmico. A resposta oferecida a esse desespero veio, paradoxalmente, na forma de ultracapitalismo.
Se o neoliberalismo — regime de precariedade e competição individualizada — já produziu devastação, o ultraliberalismo contemporâneo — tingido na pele alaranjada, na alma pervertida, na mente doentia e no corpo putrefato do trumpismo, manifesto não apenas em Trump, mas também em seus congêneres — prenuncia algo ainda mais sombrio: não apenas o aprofundamento da desigualdade, mas a normalização da crueldade social. A corrosão das instituições democráticas, a redução de direitos, a deslegitimação da ciência e da solidariedade aceleram o processo de destruição. O capitalismo, em sua forma mais radical, mostra-se integralmente: uma máquina de morte. Surge, enfim, travestido de neofeudalismo.
A filosofia crítica já havia alertado que toda linha de fuga, quando recapturada, pode se transformar em catástrofe. Sua solução histórica sempre se deu pelo fascismo. E é exatamente esse cenário que enfrentamos: a captura do desejo de viver transformada em exaustão, desespero e morte. A serenidade aparente do sistema é véu ilusório que esconde a velha engrenagem da exploração, essa essência destrutiva que Nancy Fraser desvela como ciclos incessantes de expropriação — da natureza, da raça, do gênero, do cuidado e, pela pulsão de morte, do próprio indivíduo, despojado de si e de seu devir. É voracidade sem freios, que devora florestas e rios, consome a vitalidade humana, esvazia vidas até reduzi-las a números frios, inscritos nas estatísticas de overdose e suicídio.
Compreender isso é reconhecer que o capitalismo ultraliberal não se conserta com pequenos ajustes. Ele é, em si, um regime de destruição. Seus efeitos estão diante de nós, nos consumindo nacos de vida a cada respiração poluída pela natureza devastada, nas comunidades dissolvidas na intolerância, no desprezo cultivado pela violência, na arrogância e na indiferença; enfim, nos corpos que cedem ao peso da sobrevivência. Aceitar essa verdade não é ceder ao pessimismo, mas assumir a responsabilidade de construir alternativas. É nesse gesto que reside o desafio de nossa sociedade, cindida e fraturada, mas ainda capaz de resgatar o que é essencial: nossa humanidade.
Enquanto a utopia socialista não se realiza entre nós, enquanto não conseguimos descê-la dos céus à Terra, talvez a convocação mais urgente seja esta: reencontrar a coragem de imaginar outro mundo e semear delicadeza em cada gesto cotidiano. É reconstruir redes de cuidado — nos bairros, nas escolas, nos locais de trabalho — capazes de sustentar a vida diante da lógica voraz da mercadoria. Cada ato de solidariedade, cada palavra de atenção, cada espaço que permita criação e escuta já é uma clareira no presente, um pequeno território de resistência. E é nesses territórios, frágeis mas persistentes, que repousa a possibilidade de um futuro em que viver não seja apenas resistir à morte, mas cultivar o florescimento humano em sua plenitude.

Precioso Edward, quantas gerações mais , necessitamos para cravar, extinção, sobrevivência ou florescimento?