Há, entre nós, um país que se recusa a se enxergar em quem sobe

Porteiro no elevador

Há, entre nós, um país que se recusa a se enxergar em quem sobe

Edward Magro | 29/07/2025

Vivemos um daqueles raros momentos históricos que, em tese, mereceriam celebração: desemprego em queda livre, massa salarial em alta, fome recuando ao nível do erro estatístico e uma classe média que, depois de longos anos de recesso, volta a admitir novos membros. Um país em ascensão, diriam os entusiastas — merecedor, talvez, de uma nova capa da Economist, a bíblia do liberalismo mundial. Um Brasil que, pela primeira vez em muito tempo, consegue fazer da esperança um dado empírico, compartilhado, vivenciado no dia a dia, e não apenas uma palavra decorativa em discursos oficiais.

Para que não reste dúvida, descreverei de outra forma os quatro avanços socioeconômicos que escolhi para ilustrar minha opinião. Poderia ter selecionado outros, mas contive-me em apenas quatro. O Brasil vive um momento de progressos significativos no campo socioeconômico, considerado o melhor da série histórica em diversos indicadores-chave. A taxa de desemprego caiu para 6,2% no trimestre encerrado em maio de 2025, o menor nível já registrado para esse período desde o início da série, em 2012. Paralelamente, indicadores apontam para uma tendência de mobilidade social ascendente, com redução da desigualdade de renda e fortalecimento da classe média — um movimento ainda gradual, mas com sinais consistentes de avanço em relação a anos anteriores. A massa salarial atingiu seu maior patamar histórico, somando R$ 354,6 bilhões, fruto da expansão do emprego formal e da elevação dos rendimentos médios. Em um marco simbólico e sem precedentes desde 2014, o país saiu oficialmente do Mapa da Fome da ONU, ao reduzir a subalimentação para menos de 2,5% da população, consolidando o impacto de políticas públicas robustas e coordenadas no combate à insegurança alimentar.

Nesses três anos, avançamos muito — por demais, como diria um mineiro. Mais claro não canta o galo, como diria um piracicabano.

E, no entanto, diante desse cenário, a desaprovação ao governo que promove tais avanços paira nos respeitáveis 51%, segundo o Ipespe. É um dado que não se acomoda facilmente à lógica, tropeça na razão e convida à reflexão menos óbvia.

O que pode significar, então, esse 51% de desaprovação? Que mais da metade da população está descontente com uma gestão que tira o país do Mapa da Fome e devolve dignidade a milhões de trabalhadores? Há, é claro, os que jamais aprovariam Lula, mesmo que ele transformasse a água do Tietê em vinho francês. Gente que não gosta do PT, da esquerda, da voz rouca do operário ou, simplesmente, do fato de ele existir. Isso é sabido. Mas, tirando esses enclaves afetivos — e não são poucos —, restam os outros: os que talvez digam “nada pessoal”, mas que tampouco se sentem à vontade diante do espetáculo silencioso da ascensão social. Por quê? Para esses, o elevador social só funciona se não parar em todos os andares?

Não sou sociólogo, nem psicólogo, tampouco filósofo. Não entendo da sociedade, nem da alma humana — menos ainda de seus descaminhos. Posso estar enganado, mas suficientemente atento para perceber que, quando o Brasil melhora para os pobres, não são apenas os pobres que sentem algo. Há um tipo específico de incômodo social que não se revela como preconceito — palavra gasta demais para a profundidade do fenômeno —, mas como uma fratura ontológica: é a ideia de que, se todos tiverem dignidade, status e algum poder de consumo, então nada mais faz sentido. O que separa o cidadão de bem do porteiro, do caixa do supermercado, do garçom? A ascensão dos de baixo abala a metafísica do mérito individual, que tantos gostam de repetir no almoço de domingo.

E essa perturbação íntima, embora raramente confessada, transmuta-se em rancor político. Não se trata de ideologia, tampouco de economia: trata-se de posição no mundo — o espaço ocupado entre os entes.

É por isso que a recuperação econômica, por mais robusta que seja, não basta para promover harmonia social. A história recente tem mostrado, de forma inquietante, que a melhoria econômica, quando acompanhada de inclusão social, aprofunda o fosso civilizatório da nossa sociedade, exacerba tensões latentes, em vez de saná-las.

O incômodo com os avanços é menos sobre o que se ganha, e mais sobre quem está ganhando. Quando um retirante nordestino pode viajar de avião ou matricular o filho na universidade pública, não é apenas um sujeito que ascende — é um espelho que se quebra na cara de muitos que sempre se acharam proprietários do país e de suas benesses. A raiva, nesse caso, não é contra a política social, mas contra seus beneficiários. Os raivosos sempre existiram, mas estavam quietos, camuflados nos dados demográficos, escondidos atrás dos números, fingindo civilidade. Bastou, porém, a atmosfera permissiva do bolsonarismo para que saíssem da casinha, espumando ressentimento. Com a eleição de Lula, refluíram um pouco, é verdade, mas continuam ali, latentes, esperando a próxima pesquisa de opinião para dizer, sem dizer: “Essa gente deveria saber o seu lugar”; o sussurro brutal de um ressentimento que não ousa se dizer em voz alta.

Não nos livraremos deles. São parte do tecido histórico do país — tão entrelaçados e entranhados quanto os engenhos, os pelourinhos, os quartéis e, em tempos mais recentes, os púlpitos argentários das igrejas pentecostais. A democracia liberal, com todo o seu verniz civilizatório, é incapaz de contê-los; ao contrário, lhes estende justamente as liberdades que eles jamais hesitariam em negar aos outros. Ao não contê-los, é fagocitada pelo fascismo, esse mutante farsante, especialista em oferecer soluções simplórias para problemas que nunca existiram. E aí reside sua artimanha essencial: disfarça-se de resposta social quando, na verdade, é o expediente econômico que o próprio capitalismo engendra para conter suas crises — aquelas que o liberalismo político, com suas promessas elegantes e insuficientes, não soube resolver.

E isso, gostemos ou não, é parte do jogo — um jogo imperfeito, repleto de cartas marcadas, mas ainda assim é o jogo que temos que jogar. A tarefa que nos é imposta não é a de eliminá-los (isso nos levaria a desejar um autoritarismo simétrico ao que se combate), mas deslegitimá-los: arrancar-lhes o manto da razão, isolá-los nas margens do discurso público, deixá-los nus na planície. Dissolver sua lógica com mais escola, mais política, mais cultura, mais paz e mais amor!

Não é tarefa para um mandato, tampouco para um governo. É missão de época, de uma ou mais gerações.

Mas tampouco há razão para desistir. O Brasil já foi um país onde se morria de fome em silêncio. Hoje é um país onde a fome recua, mesmo sob o ruído dos que se ofendem com o prato cheio do outro. Os avanços vieram para ficar, porque não são concessão: são conquista. E os que hoje torcem o nariz para a ascensão alheia, amanhã terão de se acostumar com ela. Ou afogar-se no próprio azedume.

A história, mesmo aos tropeços, segue adiante, e nós, teimosos da esperança, precisamos fazer dela não só caminho, mas destino.

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