O julgamento e a República em disputa

Milicos réus

O julgamento e a República em disputa

Edward Magro | 01/09/2025

Amanhã não será apenas o segundo dia de setembro de 2025. Também não será apenas a primeira terça-feira do mês. Tampouco será o dia em que a temperatura oscilará entre 15 e 26 graus em Carapicuíba, conforme vaticina o Climatempo. O dia será mais quente; será um todo, e não apenas uma terça parte, e não será o segundo dia, mas o primeiro de uma etapa auspiciosa que se abre na vida da democracia brasileira. Pela primeira vez, um ex-presidente e a cúpula de generais que o acompanharam são chamados a responder por uma conspiração golpista. Não está em questão apenas a biografia de um político ou de um punhado de fardas, mas a própria forma como a democracia brasileira decidiu enfrentar seus fantasmas.

Embora a cena revele novidade histórica evidente, ao mesmo tempo ela se insere numa continuidade. Bolsonaro e seus generais são herdeiros de uma tradição longa, marcada por ensaios autoritários que, desde a República, se repetem com notável regularidade.

O ex-capitão, que agora ocupa o banco de réus, encarnou a síntese do autoritarismo cívico-militar brasileiro. O populismo ressentido, o fascismo tardio e a retórica messiânica se fundiram para compor um personagem que se apresentou como porta-voz exclusivo do “povo”. Mas esse povo nunca foi a multiplicidade real, cheia de contrastes e contradições; era uma invenção homogênea, forjada para aplaudir, obedecer e perseguir os que ficassem fora do círculo. A força dessa construção não estava em ideias consistentes, mas em emoções intensas. O medo de um país em desordem, a nostalgia de um passado mítico, o ódio aos que ousaram pensar diferente transformaram a política em excitação coletiva, quase liturgia. Essa ficção de um povo único reduzia a complexidade social a um coro que acreditava falar com sua própria voz, quando, na verdade, apenas repetia o comando do chefe.

Não havia programa ou projeto, apenas um repertório emocional de ressentimento e uma promessa catártica de purificação do andar. Ele, como fascista populista, mobilizou com a mesma intensidade o anti-intelectualismo integralista dos anos 1930 e o fervor neopentecostal do século XXI. O resultado foi uma massa politicamente excitada, capaz de elevar o líder à condição de mito e de enxergar inimigos em todos que ousaram se colocar fora do círculo de obediência. Nem o genocídio da Covid nem a subtração de joias conseguiram convencer o rebanho de que seguia um sociopata perigoso, um pervertido violento ou um corrupto cínico.

Os milicos civis que cercaram o mito-farsa, como Anderson Torres e o delegado Ramagem, foram o prolongamento burocrático dessa lógica perversa. Não eram apenas administradores, mas operadores da violência institucionalizada. Na intersecção entre farda e terno, encarnaram a figura híbrida que sustenta o fascismo em sociedades democráticas, funcionários da exceção prontos a corromper as regras do jogo em nome de uma ordem imaginária. Instalados em cargos de segurança e inteligência, corroíam as normas de dentro, naturalizavam a violência e conferiam aparência de normalidade ao que já se orientava para a ruptura. Nessa convergência entre gabinete e quartel, ergueu-se o coração do bolsonarismo, uma engrenagem que uniu ressentimento popular, disciplina militar, astúcia administrativa e sede de dinheiro fácil. Muita sede!

Nada disso teria sido possível sem a velha vocação tutelar dos generais brasileiros. Desde a proclamação da República, a farda jamais se manteve afastada das crises políticas. Quando não foi o próprio gerador da ruptura institucional, interveio com ou sem convite, sempre em nome de uma ordem superior, sempre convicta de que o país não se governa a si mesmo. Essa presença constante criou uma estranha naturalidade: os militares não se viam como servidores transitórios do Estado, mas como guardiões perenes da nação, autorizados a intervir sempre que a política lhes parecia escapar ao controle. Por trás desse ímpeto intervencionista havia menos civilismo e altruísmo e muito mais interesses pessoais. Militares, em qualquer país, são as bocas mais famintas das tetas públicas.

O século XXI apenas atualizou o padrão histórico de tutela militar. O tuíte do general Villas-Bôas pressionando o Supremo Tribunal Federal, enquanto traía Dilma Rousseff, não foi um gesto isolado, mas a manifestação de um instinto antigo: lembrar à democracia que havia limites impostos pela farda. Ao mesmo tempo, Etchegoyen, herdeiro de uma linhagem de golpistas, atuava como articulador entre militares e empresários, preparando o terreno para o golpe que derrubaria o governo e instauraria uma gestão paralela no governo Temer. Outros generais ocupavam gabinetes estratégicos para vigiar ministros e interferir na ação do Supremo. A imposição do general Azevedo e Silva à Corte, que mais tarde assumiria o Ministério da Defesa no governo do ex-capitão, consolidou a presença militar direta sobre instituições civis.

Quando o populismo chegou ao poder, encontrou não apenas apoio, mas cumplicidade. O banquete de privilégios e verbas se combinou com uma conspiração persistente para prolongar o poder. Enquanto se proclamavam defensores da lei e da ordem, os militares corroíam, por dentro, a legalidade democrática, transformando a tutela em instrumento de controle e perpetuação do projeto autoritário.

Se não houve golpe consumado em 2022, a explicação não está na ausência de planos, mas na insuficiência de condições. O desejo de ruptura construído durante quatro anos desembocou no 8 de janeiro, tentativa mais explícita de romper a institucionalidade, e sua derrota não se deveu à lucidez dos conspiradores, mas à sua incompetência. Ainda assim, o episódio escancarou a conexão íntima entre o populismo fascista e a tutela militar. Pela primeira vez, ambos foram levados a julgamento.

A importância desse julgamento ultrapassa o momento presente. Ele rompeu a lógica histórica segundo a qual os militares sempre saíram de cena antes que a justiça chegasse. Em 1985, deixaram o poder sem prestar contas por 1964. Em 2013, reapareceram discretamente, sem serem cobrados. Agora, em 2025, fascistas, generais e civis dividem o mesmo banco dos réus. Esse gesto redefine o campo político. A democracia brasileira, imperfeita e frágil, afirma-se não apenas como ritual eleitoral, mas como capacidade institucional de punir aqueles que a ameaçam. Finalmente, vai além do ciclo eleitoral, em direção à institucionalidade ampla da democracia.

O impacto desse banco de réus é também continental. O julgamento brasileiro serve de advertência aos que, em países vizinhos, flertam com a tentação golpista. Argentina, Chile, Paraguai e Colômbia estão na alça de tiro do fascismo. Ao mostrar que, no Brasil, o extremismo não prospera, que aqui o fascismo não se cria, atua-se como freio às intenções radicais da região. A democracia, ainda permeada de contradições, pode reagir. Se a lição for compreendida, neutraliza parte do efeito de contágio do trumpismo latino-americano, que busca transformar ressentimento social em projeto autoritário para resgatar a América Latina como quintal estadunidense.

Não há como não se alegrar por viver este momento, fundacional sem dúvida. Não inaugura uma democracia perfeita, mas interrompe uma sucessão de indulgências. A República sempre preferiu pactuar com seus conspiradores; agora, pela primeira vez, decide confrontá-los. Quando a lei se aplica ao populista e ao general, a democracia deixa de ser adorno retórico e se torna prática de autodefesa.

Essa experiência projeta uma possibilidade rara; a de que o Brasil comece a aprender a se proteger de si mesmo.

Aos conspiradores, desejo-lhes penas máximas, e que a prisão não lhes seja leve.


Publicações que, de uma forma ou de outra, aparecem citadas no texto:

Carlos Fico
Utopia autoritária brasileira: Como os militares ameaçam a democracia brasileira desde o nascimento da República até hoje
https://www.planetadelivros.com.br/livro-utopia-autoritaria-brasileira/415042

Umberto Eco
O Fascismo Eterno
https://www.martinsfontespaulista.com.br/o-fascismo-eterno-855068/p

Antonio Scurati
Fascismo e Populismo: Manifesto por um Novo Antifascismo
https://globolivros.globo.com/livro/fascismo-e-populismo-manifesto-por-um-novo-antifascismo/cm7no2mi6000ahhrweevebrfx

Antonio Scurati
A Melhor Época da Nossa Vida
https://editoramundareu.com.br/product/a-melhor-epoca-da-nossa-vida/

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