Não olhe para cima

Olhe para cima

Edward Magro | 19/08/2025

Algo de muito sério está acontecendo, e não estou certo de que todos estejam percebendo. Não por falta de indícios — eles se acumulam —, mas porque a atenção coletiva tem sido sequestrada, dia após dia, pelo teatro grotesco encenado pelo palhaço fascista de pele alaranjada. O enredo é elementar: distrair, confundir, provocar risos nervosos e, nesse intervalo, avançar projetos políticos de destruição. É a lógica do filme Não Olhe para Cima, paródia quase-vida-real do primeiro mandato de Trump, em que Meryl Streep, emulando Trump, exibia-se dizendo: “Não se preocupem com o meteoro, olhem para mim”. Um convite a ocupar o tempo alheio com truques baratos, a enganar para que ninguém percebesse o desastre iminente.

Naturalmente, tudo se agravou agora, em seu segundo mandato. Trump levou ao paroxismo sua histrionice e bizarrice; transformou-se em um daqueles “homens da cobra” da Praça da Sé, cercado por uma roda de curiosos hipnotizados à espera de uma serpente que nunca sai da mala, enquanto vende pomadas milagrosas feitas de óleo de peixe-elétrico. O truque, invariável, consiste em capturar a atenção com gestos e uma prosa longa, carregada de fantasmagorias, enquanto se vende a farsa como solução prodigiosa.

Vazou um áudio da reunião de ontem na Casa Branca com líderes europeus e Zelensky, em que Trump, balançando o corpo em ritmo de bebê reborn em convulsão, confidenciava a Emmanuel Macron que Putin lhe teria proposto um acordo pessoal — “ele quer fazer um acordo comigo”. Macron, pego de surpresa, hesitou entre rir ou chamar uma babá para cuidar do ancião-bebê. A cena é emblemática: o fascismo contemporâneo se alimenta de líderes que confundem megalomania com ingenuidade.

Quem não se recorda da versão tropical desta mesma cena, também envolvendo Putin? Bolsonaro, de malas prontas para levar Michelle a passear na Rússia, deteve-se no cercadinho do Alvorada, onde uma devota do rebanho lhe perguntou se pediria a Putin o fim da guerra. Com ares de mistério, respondeu que conhecia “o caminho das pedras”, mas não podia garantir que o líder russo aceitasse seus conselhos. O fascismo contemporâneo é exatamente isso: uma simbiose entre líderes mentalmente instáveis e massas, instáveis mentalmente, dispostas a acreditar em qualquer fábula.

Enquanto os espetáculos da guerra na Ucrânia, do tarifaço e da caçada a imigrantes se desenrolam, algo mais profundo se move nos bastidores. Os donos do império estadunidense percebem, há pelo menos quinze anos, que sua hegemonia escorre por entre os dedos. Hoje já não comandam a economia mundial: a China e os blocos econômicos dos quais os EUA não participam ditam o ritmo do comércio global há mais de uma década. Diante desse horizonte de declínio, Washington recorre ao velho manual de receitas: retomar a América Latina como quintal, reserva de recursos e mercado cativo.

Esse projeto já estava em marcha no governo Obama, apenas com um picareta mais elegante à frente. Mas a lógica permaneceu a mesma: impor, jamais negociar. Os Estados Unidos, afinal, habituaram-se àquilo que se conhece como “diplomacia do porrete”. Não aprenderam a dialogar, porque durante um século bastou ordenar. Agora, confrontados por um mundo em que é necessário negociar, não sabem como agir. Perderam o cacoete da negociação, perderam espaço, perderam prestígio.

E o que resta a quem não sabe conversar? Recorrer ao repertório de sempre: desestabilizar países. O cardápio inclui tudo o que já conhecemos: vigilância cibernética, espiões infiltrados, quintas-colunas locais — sempre abundantes — e, quando necessário, o envio ostensivo de embarcações militares, como as que hoje cruzam os mares do Caribe diante da Venezuela. O recado é inequívoco: se não podem mais ditar as regras globais, ao menos tentarão reafirmar sua velha hegemonia regional.

Enquanto isso, Trump cumpre a função de cortina de fumaça. Suas tentativas de aplicar leis americanas em outros países e suas declarações infantis diante de líderes estrangeiros compõem um espetáculo diversionista. Não que ele tenha plena consciência disso — é um bestalhão a serviço —, mas aqueles que trabalharam para elegê-lo sabem perfeitamente o que estão fazendo.

O que está em jogo, portanto, não se limita ao comportamento ridículo dos personagens caricatos que ocupam posições de destaque no governo Trump — alguém conhece um palhaço mais desarticulado que gusano Marco Rubio? —, mas se estende à estratégia de um império em declínio, determinado a sobreviver à custa de regiões que sempre tratou como periféricas.

Para nosso bem, no entanto, também surgem sinais promissores. O mesmo declínio que impele os Estados Unidos a tais manobras evidencia a força dos blocos alternativos, a resistência dos povos e as alianças que se constroem sem pedir bênção a Washington. O perigo é real, mas nele reside também uma oportunidade. O futuro da América Latina não precisa repetir o padrão da subserviência; pode se afirmar na soberania, na solidariedade entre os povos e na construção de novas formas de convivência regional e internacional.

É por isso que nós, brasileiros e latino-americanos, devemos recusar o papel de plateia distraída. Não podemos permitir que os “homens da cobra” capturem nossa atenção, desviando-nos das tramas mais profundas. É preciso olhar para cima, para os sismos imperceptíveis que alteram o equilíbrio do mundo, e não apenas para as caretas de ocasião.

Algo de muito sério está acontecendo. Mas também há sinais profundamente promissores. Se olharmos com atenção, se nos permitirmos refletir, aprender e agir com coragem, poderemos, juntos, testemunhar e contar às futuras gerações que o século XXI não precisou ser o da repetição do fascismo na América Latina. Ao contrário, pode se tornar o século em que os povos desta região, cansados de farsas e golpes, começaram a escrever sua própria história — uma história mais rica, mais viva e digna de ser compartilhada.

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Este post tem 2 comentários

  1. Carlos Agostini

    Parabéns!
    Excelente!

  2. Dilamar Rodrigues dos Santos

    Espetáculo de ensaio. É bem isso o que está acontecendo.