24/07/2025
A decisão anunciada há pouco pelo presidente Emmanuel Macron, de reconhecer oficialmente o Estado da Palestina na próxima Assembleia-Geral das Nações Unidas, é mais do que uma boa notícia: trata-se de um gesto histórico, digno de ser celebrado com a intensidade dos momentos que rasgam a couraça da história. Representa um golpe certeiro na armadura diplomática de Israel, há décadas corroída pela arrogância da impunidade. O gesto francês, mais do que uma celebração simbólica da luta do povo palestino, consagra uma derrota amarga para o regime nazissionista de Benjamin Netanyahu e seu gabinete composto, integralmente, por sanguinários criminosos de guerra.
Esse reconhecimento não pode ser interpretado como um simples ato protocolar, pois constitui um sinal inequívoco de repulsa. Com justeza e firmeza, Macron desfaz o véu da conivência que, por tanto tempo, cegou a Europa. Pela primeira vez, um governo pertencente ao G7 ergue a voz em meio ao genocídio, e o faz não mediante eufemismos ou lamentos cautelosos, mas por meio de uma decisão soberana que desafia o silêncio cúmplice de seus pares. Ao anunciar o reconhecimento do Estado palestino, o presidente francês afirma aquilo que a ética e a razão há muito já exigiam: a barbárie tem lado, e esse lado certamente não é o da Palestina.
Não se trata unicamente de oferecer respaldo a uma nação exaurida e esgarçada pela ocupação, pelos bombardeios, pela limpeza étnica e pelas execuções sumárias nas filas por alimentos. Tampouco se limita a denunciar a fome utilizada pelo exército israelense como solução final contra civis palestinos amontoados no campo de concentração de Gaza. O que Macron realizou foi algo cada vez mais raro na política contemporânea: recusou-se a tergiversar. Recusou-se, também, a relativizar o massacre mediante o artifício cínico da diplomacia apaziguadora. Assim, torna-se protagonista de uma inflexão que poderá encorajar outras capitais europeias — talvez de forma lenta, talvez com hesitação, mas, a partir de agora, sem mais desculpas plausíveis.
A resposta do regime israelense revelou-se previsivelmente virulenta. Israel Katz, comparável a Himmler no governo de Netanyahu, adotou seu tom habitual de ameaça ao classificar o gesto francês como “uma vergonha”. Já Netanyahu, por sua vez, recorreu à desgastada ladainha de que o reconhecimento da Palestina “recompensa o terrorismo”. Contudo, vergonha, neste contexto, é um conceito que extrapola as palavras. Ela está presente em Gaza faminta, em Gaza reduzida a ruínas, em Gaza sitiada por um cerco tão imoral quanto letal. A vergonha reside nos corpos sem nome, nos gritos sem eco, nos hospitais sem remédios. Ela se manifesta nas mãos daqueles que transformam o sofrimento humano em método de governo. Revela-se, também, na tentativa de iludir o mundo com a ameaça do Hamas, enquanto a Cisjordânia — onde o Hamas sequer está presente — é bombardeada com o objetivo vil de extinguir os palestinos e usurpar suas terras. Vergonha, no tempo presente, é estar ao lado do carniceiro e sanguinário nazissionismo israelense.
Ao romper com a neutralidade europeia, Macron recoloca a França no papel que sua história republicana exige, ou seja, o de afirmar o primado do direito contra a tirania da força. E, ainda que a decisão chegue tarde, chega, mesmo assim, a tempo. Como ouvi certa vez de Plínio Marcos: antes tarde que mais tarde.
Não se pode ignorar, contudo, o peso do gesto inaugural de Luiz Inácio Lula da Silva que, em fevereiro de 2024, nomeou o massacre em Gaza como aquilo que de fato é: um holocausto. Lula não recuou, mesmo diante do clamor orquestrado por governos ocidentais e por organizações que utilizaram o antissemitismo como escudo moral para justificar a matança. Seu gesto solitário, à época considerado imprudente, revela-se hoje como ato precursor e, sem dúvida, serviu de farol para a França de Emmanuel Macron.
A decisão do presidente francês, ainda que não altere de forma imediata o cenário geopolítico, representa uma rachadura profunda no muro de apoio automático ao regime sediado em Tel Aviv. Com esse gesto, a França assume que já não é possível conduzir a política externa com os olhos voltados apenas para as conveniências econômicas, para os pactos militares ou para os lobbies ideológicos que transformaram Israel numa entidade virtualmente imune ao Direito Internacional.
Trata-se de um passo modesto, é verdade. No entanto, nenhum passo em direção à justiça é irrelevante quando se caminha por entre escombros. O reconhecimento francês oferece alento e inspiração, podendo influenciar outras capitais — como Berlim, Londres e Roma — a abandonarem o comodismo moral e a revisarem suas posições. Mais de 140 países já reconheceram o Estado palestino. O que falta agora, senão coragem?
O governo israelense, por sua vez, perdeu qualquer autoridade moral para manifestar indignação. Seu projeto colonial, alimentado por décadas de ocupação, apartheid e manipulação cínica da memória do Holocausto, atingiu seu paroxismo no massacre atual. A cada dia, sua retórica se desnuda, revelando não um Estado sitiado, mas um regime de ocupação que se serve da guerra como método de autoperpetuação. O próprio Netanyahu admitiu, em 2019, que fortalecer o Hamas fazia parte de sua estratégia para impedir a criação de um Estado palestino. O cinismo, em Israel, deixou de ser instrumento e passou a constituir doutrina.
A escolha de Macron desafia esse cinismo. E, ao fazê-lo, lança ao mundo uma pergunta urgente: até quando os demais líderes tolerarão, com seus silêncios, a carnificina transmitida em tempo real? Até quando a Europa manterá seu pacto de indulgência com um regime que naturalizou a punição coletiva e a fome como armas de guerra?
A legitimidade do Estado palestino não depende do beneplácito de seus algozes. A Palestina não precisa pedir licença àqueles que a oprimem para existir. Sua existência constitui um direito inalienável, e não uma concessão a ser negociada sob ruínas e cadáveres.
Macron, enfim, fez sua escolha. E escolheu bem. Seu gesto é um sussurro de lucidez no meio do delírio geopolítico. Resta saber quem o seguirá — e quem, por fim, terá a coragem de olhar a História nos olhos e dizer com dignidade: eu não fui cúmplice.
