Quando morrer é o último gesto de humanidade

Dan Shimshon Mandel Philipson

Quando morrer é o último gesto de humanidade

  • Categoria do post:Barbárie
  • Tempo de leitura:6 minutos de leitura

Edward Magro | 05/08/2025

Desde o início da última campanha israelense de destruição em Gaza, em outubro de 2023, ao menos 47 soldados israelenses tiraram a própria vida. É o que revela uma matéria recente publicada pelo jornal Haaretz, não exatamente um bastião da crítica antissionista, mas uma das últimas trincheiras do jornalismo honesto dentro do próprio Estado israelense. Segundo os dados divulgados, trata-se de um número que supera, com folga, a média de suicídios registrada entre os anos de 2018 e 2022, que oscilava entre 9 e 14 por ano.

Lamentavelmente, não se pode realizar pesquisa sobre as motivações dos suicidas. Eles não respondem questionários.

É importante começar por aqui, pelo limite. Nós não sabemos o que se passou na mente desses soldados. Não temos como afirmar, nem por intuição nem por pesquisa empírica, que tenham se matado por remorso, por dor de consciência ou por repulsa à ideia de integrar um exército vocacionado à tarefa de pulverizar cidades inteiras com civis dentro. A maioria dos relatos públicos relaciona os casos à exposição prolongada a combates violentos, ao estresse e feridas mentais que não tiveram tempo de cicatrizar. O que não há, ainda, é uma escuta dos indícios éticos. Eles não falam, e nós não adivinhamos.

Ainda assim, seria intelectualmente desonesto não considerar a hipótese. E se, entre os 47, ou 50, ou quantos mais forem surgindo, houvesse quem não suportasse continuar sendo instrumento de um massacre? E se, diante do espelho, visse não o próprio uniforme, mas os olhos do menino palestino desfigurado por um míssil dito de precisão? Essa seria uma condição de altíssima dignidade. Negar-se a fazer parte de uma carnificina é, sim, condição a ser exaltada. E, caso esse gesto final tenha sido, para alguns, o último modo de dizer “não”, que seja compreendido como ato de recusa absoluta, como quem se lança para fora da engrenagem a fim de deixar de ser dente da máquina.

Negar-se a ser forno que incinera vidas civis é, antes de tudo, profundamente humano.

Entre as milhares de fardas que marcham sobre os escombros de Gaza, é razoável presumir que ainda existam sujeitos — ou, ao menos, fragmentos de sujeitos — capazes de resistir ao que lhes foi ensinado desde a mais tenra infância. Capazes de sentir, no fundo do estômago, o peso de empunhar uma arma contra famílias inteiras, contra tendas de refugiados, contra crianças encurraladas em escolas. Seres humanos, sim, mesmo que tenham sido educados a odiar a alteridade, a temer o árabe, a apagar o palestino.

Essa educação, como se sabe, tem método. Em 2012, a professora Nurit Peled-Elhanan, da Universidade Hebraica de Jerusalém, publicou um livro fundamental: Palestine in Israeli School Books: Ideology and Propaganda in Education. Nele, analisa dezenas de manuais didáticos e demonstra, com paciência acadêmica e desespero moral, como o currículo escolar israelense apaga, distorce e desumaniza os palestinos. O árabe não é apresentado como vizinho, colega ou sujeito: ele é descrito como obstáculo, ameaça e, por fim, como ausência. A empatia, nesse sistema educacional, não é apenas omitida — ela é sistematicamente desencorajada. A alteridade não é vista como riqueza, mas como problema a ser eliminado.

Nesse cenário, o que surpreende não é o suicídio, mas a raridade da insubordinação. A lógica dominante é a da obediência militar embebida em ideologia racializada. Que haja, ainda assim, soldados que colapsem, que se silenciem de modo tão radical, talvez nos diga que a humanidade resiste, ainda que às custas de vidas destruídas por dentro. É impossível saber se a recusa à barbárie foi, para alguns, insuportável ao ponto da ruptura. Mas o simples fato de considerarmos essa possibilidade é luz sobre a escuridão em que esses jovens foram lançados.

Enquanto isso, do outro lado do cerco — o lado dos que não têm sequer cercas —, não há notícia de suicídios palestinos. Não por falta de razões, evidentemente, mas porque, talvez, não se faça necessário procurá-la: a morte, para os palestinos, é sombra fixa e persecutória, tem itinerário programado e tempo cronometrado para acontecer. Nenhum menino em Rafah precisa se perguntar se vai morrer; a dúvida, quando muito, é quando e de que forma. Um drone? Um tanque? Uma bala perdida com destino exato?

Mais uma vez, o acaso revela uma familiaridade histórica. Nos últimos meses da Segunda Guerra Mundial, sobretudo entre janeiro e maio de 1945, a Alemanha nazista conheceu uma onda de suicídios em massa. Só em Berlim, mais de 7.000 pessoas encerraram a vida. Entre os generais da Wehrmacht, 53 preferiram o revólver à rendição. Era o colapso do sistema, do mito, da utopia totalitária — e também, talvez, o retorno tardio da consciência.

Hoje, o Estado de Israel, sob o governo nazissionista de Netanyahu, repete, com novos símbolos e outra gramática, os mesmos mecanismos de aniquilação dos quais o povo judeu foi vítima. A linguagem da segurança, o léxico da pureza e a pedagogia do medo convergem para um regime que transforma soldados em máquinas e populações civis em alvos. Como um espelho quebrado da história, refaz-se o forno com novo design: drones em vez de câmaras, censura em lugar de fogueiras. E soldados jovens, formados para matar, descobrindo tarde demais que talvez não devessem ter aceitado o convite para o baile da morte.

A ironia aqui não é cruel nem cínica; ela é apenas lúcida. É perfeitamente possível lamentar a morte de soldados israelenses e, ao mesmo tempo, exigir justiça pelas mortes palestinas. É possível reconhecer a dignidade de quem se recusa ao genocídio, mesmo que essa recusa se dê por colapso ou por desespero. E se, entre os que se foram, houver ao menos um que escolheu partir por não suportar mais participar, que isso seja lembrado. Não como herói, mas como alguém que, no último instante, ousou ser humano.

Esses 47 não fizeram discursos. Nem deixaram cartas. Talvez seja justamente entre esses que recuaram silenciosamente que possamos entrever os últimos lampejos de humanidade em meio à fuligem. É possível que exista, ao menos, um — ainda que seja apenas um único — aí, nesse meio. Se for o caso, que sua ausência conte, já que sua presença não pôde contar. Que sua morte, mesmo envolta em silêncio e ambiguidade, seja como uma daquelas perguntas que não precisam de resposta, mas que transformam tudo a partir do momento em que são feitas.

Deixe um comentário