Chanceler Mauro Vieira

Quem não cala não consente!

Edward Magro | 31/07/2025

Nas últimas semanas, o governo brasileiro tomou quatro decisões históricas. Articuladas em silêncio, comunicadas com sobriedade e ignoradas com inquietante unanimidade por grande parte da imprensa nacional. Nenhuma manchete em destaque, nenhum editorial à altura, nenhum repórter acompanhando de perto o que talvez sejam os atos mais significativos da diplomacia brasileira neste século. O que se passou foi quase clandestino, como se houvesse um pacto tácito para ocultar a dignidade.

Essas quatro decisões, ao mesmo tempo corajosas, ousadas e moralmente incontornáveis, foram tomadas diante do horror em curso na Faixa de Gaza, onde o Estado de Israel, sob a chefia nazissionista de Benjamin Netanyahu, promove o que o chanceler Mauro Vieira denominou “potencial genocídio”. Trata-se de uma expressão juridicamente cautelosa, mas eticamente precisa. Em toda a Palestina, uma população civil inteira é punida, há mais de sessenta anos, com metódica crueldade colonial, sob os fuzis do exército e as botas dos colonos-invasores, assassinos ladrões de terras e casas. Gaza, hoje, não é apenas bombardeada: é desidratada, esfomeada, asfixiada, soterrada sob escombros e apagada da memória mundial com uma frieza frívola, à semelhança de outros extermínios sistemáticos da história, inclusive o Holocausto judeu.

Quando o presidente Lula declarou, durante entrevista coletiva na Etiópia, ao final de sua participação na Cúpula da União Africana, em fevereiro de 2024, que “o que está acontecendo na Faixa de Gaza com o povo palestino não existiu em nenhum outro momento histórico. Aliás, existiu. Quando Hitler resolveu matar os judeus”, o governo brasileiro rompeu a inércia. E abriu ao mundo uma porta pela qual entrou uma réstia de luz e uma lufada de ar fresco, provocando uma reflexão necessária sobre seis décadas de opressão palestina sob o jugo violento de Israel.

Nesta semana, o governo deu novos passos, passos firmes, importantes, e, possivelmente, exemplares.

Em primeiro lugar, abandonou a Aliança Internacional para a Memória do Holocausto (IHRA), gesto que, à primeira vista, poderia parecer contraditório. No entanto, não há contradição alguma. A adesão à IHRA, na prática, sustentava um artifício de manipulação política. A permanência nessa aliança, criada para preservar a memória do extermínio nazista, tornou-se insustentável diante do uso cínico que o governo israelense faz das vítimas do passado. Em nome dos mortos de ontem, perpetra-se o massacre de hoje. Recusar-se a compactuar com esse duplo insulto à memória e à dignidade humana é, acima de tudo, um ato de fidelidade às vítimas do próprio Holocausto.

Em seguida, o Brasil formalizou sua entrada na ação movida pela África do Sul na Corte Internacional de Justiça, com base na Convenção sobre Genocídio. A acusação é clara: Israel comete genocídio contra o povo palestino. Não se trata de retórica inflamada, mas de um processo juridicamente fundamentado, respaldado por provas, testemunhos, imagens, relatórios e cadáveres. A decisão brasileira representa não apenas solidariedade, mas também um compromisso com o direito internacional, tantas vezes violado, tantas vezes impune.

Além disso, o chanceler Mauro Vieira anunciou anteontem, em assembleia das Nações Unidas em Nova Iorque, um pacote de sanções políticas, militares, comerciais e diplomáticas contra Israel: bloqueio à exportação de armas, controle rigoroso de importações oriundas de assentamentos ilegais na Cisjordânia, rejeição ao novo embaixador israelense em Brasília e fortalecimento do apoio técnico à Autoridade Palestina. Em meio à brutalidade institucionalizada, o Brasil ergueu um marco de repulsa. Discreto, porém firme. Preciso e moralmente irrefutável.

Por fim, o Itamaraty propôs à ONU a criação de uma missão internacional de verificação e monitoramento dos crimes em curso nos territórios ocupados. Trata-se de um gesto ambicioso, que exige articulação global, mas que recoloca o Brasil num papel há muito devido: o de ator altivo, soberano, defensor do multilateralismo, capaz de contrariar os ditames de Washington e de recusar o silêncio cúmplice dos satélites do império.

Sim, há um preço. O governo brasileiro sabe que desafiar Israel é, em alguma medida, desafiar os Estados Unidos. E os Estados Unidos sustentam o apartheid israelense com verbas, armas, vetos e omissões. Confrontá-los, para um país do Sul Global, é um gesto raro de soberania. O Brasil o fez. Sem hesitação. E por isso merece ser celebrado.

A imprensa brasileira, tão célere em apontar supostos arroubos ideológicos na política externa, preferiu, neste caso, o silêncio. Talvez por não saber como lidar com um gesto de coragem moral em tempos tão cínicos. Talvez por receio de tocar em feridas que comprometem interesses econômicos e alianças estratégicas. Ou, mais provavelmente, por alinhamento deliberado com a narrativa hegemônica. O jornalismo sionista pode continuar mudo, mas a história não será conivente.

As ações conjuntas do Brasil e da África do Sul, somadas aos recentes pronunciamentos de França, Irlanda, Noruega e Espanha, trarão à luz, aos olhos do mundo, a verdadeira natureza da violência colonial israelense: um crime contra a humanidade. A coragem dos humanistas empurra o nazissionismo para o precipício da desonra. Da mesma forma como hoje nos envergonhamos dos horrores do século XX — do Holocausto judeu e do holocausto congolês, o maior deles — é impensável não sentirmos hoje vergonha e ódio, ódio profundo, fúria violenta, diante do holocausto palestino perpetrado pelo Estado de Israel.

O termo nazissionismo nomeia com nitidez o regime que profana cadáveres, bombardeia escolas, incendeia igrejas, impede pão, água e socorro aos vivos, e cemitério aos mortos, enquanto transforma a vitimização histórica em licença para o supremacismo bélico. É essa fusão perversa que sustenta, há décadas, a opressão brutal do povo palestino.

Diante disso, as decisões do Brasil não são apenas iniciativas diplomáticas. São afirmações de civilidade. Eu me sinto amplamente representado. Vejo meu próprio sangue circular nas veias dessas decisões. Sou parte de um grito que era rouco em fevereiro de 2024, mas que agora se amplifica e anima a ânima daqueles que se recusam a ser cúmplices

As decisões do Brasil são gestos de contrição coletiva por termos, como humanidade, permitido que a Palestina se tornasse um cemitério a céu aberto. E são também sinais de esperança, esperança que ressurge, ainda que vacilante, com o reconhecimento do Estado palestino por países de consciência desperta. Um gesto que mostra que a barbárie não é destino. Que ainda é possível nomear o horror, escolher a justiça, e agir conforme os princípios de uma nação que não aceita ser sombra no tabuleiro dos impérios.

Quando o mundo for chamado a responder pelas ruínas de Gaza, o Brasil poderá, com pesar mas altivez, afirmar: nós nos recusamos a ser cúmplices. Nós não fechamos os olhos. Nós não nos calamos. E não se calar diante da Palestina é, hoje, a forma mais elevada de humanidade — porque é também a última arma que nos resta contra a limpeza étnica em curso.

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