Quarto Stato (Giuseppe Pellizza da Volpedo, 1901)

Sem infernos, para ninguém

Edward Magro | 02/08/2025

Sou de uma geração de ateus, profundamente marcada pela Teologia da Libertação. Não me pergunte por quê, mas entre a resposta lacônica — “idiossincrasias da existência política” — e a mais provável — “o encantamento de fazer os Céus baixarem à Terra”, proposto por seus pensadores —, é esta segunda que mais me alcança. Digo isso porque uma frase me martela a cabeça há pelo menos quatro anos:

“É do inferno dos pobres que se faz o paraíso dos ricos.”

Essa frase-pensamento, seca e irrefutável, poderia muito bem ter sido dita por Marx, Spinoza ou Schopenhauer — no limite, talvez até por Nietzsche. Mas não foi. Foi dita por Lula. Sabedoria colhida no seu caminhar existencial, de retirante a presidente.
Pouca gente lhe deu atenção quando a pronunciou, há mais de quatro anos, pouco depois de sair de uma prisão injusta e arbitrária — prisão forjada por um sistema corrompido, sentenciada por um juiz corrupto.

Frase de impiedosa clareza, revela como o brilho da riqueza capitalista repousa sobre as sombras da miséria alheia. Simples e, literariamente, tão elegante quanto a de Tolstói: “Os ricos farão tudo pelos pobres, menos descer de suas costas.”

Tolstói a escreveu em um mundo rural, nos primórdios de um capitalismo incipiente na distante Rússia czarista; Lula a disse em um capitalismo plenamente instalado, ressuscitado de várias crises que o haviam levado à beira da morte, geradas por sua avidez por concentrar as riquezas humanas.

Ambos, cada um à sua maneira, não se preocuparam apenas em descrever um sistema econômico, mas em traçar a radiografia moral de uma civilização que normalizou o sofrimento como alicerce do conforto.

Ditas com mais de cem anos de distância entre elas, as duas frases se tocam no essencial: o capitalismo segue inalterado em sua lógica de explorar para acumular, reafirmando cotidianamente que “os ricos farão tudo pelos pobres, menos descer de suas costas”, pois “é do inferno dos pobres que se faz o paraíso dos ricos.”

A História, por testemunha, mostra que o capitalismo, esse engenhoso artifício de promessas, é incapaz de promover qualquer forma de bem comum que não seja ilusória ou esporádica. Ele concentra, por estrutura, o que é produzido em comum nas mãos de poucos, enquanto transforma o tempo, o corpo e o desejo da maioria em mercadoria bruta. A desigualdade, longe de ser um defeito, é sua condição de funcionamento. O paraíso, portanto, é escasso por projeto — e, mais cruel ainda, só se ergue sobre a condenação da maioria em prol da salvação de pouquíssimos.

Spinoza, em sua serenidade racional, advertiria que nenhum gozo fundado na servidão pode ser chamado de bem-aventurança. A verdadeira liberdade, diria ele, está na potência de existir conforme a razão — o que exige não a dominação de uns sobre os outros, mas a construção de uma ordem comum onde todos possam florescer. Onde há exploração, há paixão triste. E onde imperam as paixões tristes, não pode haver liberdade. Mesmo a alegria dos ricos é um cárcere disfarçado.

Schopenhauer, pessimistamente lúcido, nos lembraria que o mundo, tal como o conhecemos, é feito de dor incessante. “A vida é sofrimento”, escreveu. Mas há graus. O sofrimento que se impõe deliberadamente aos outros em nome do lucro é não apenas inevitável — é injustificável. O sistema atual não é apenas trágico: é cruel. A resignação “pode ser” virtude metafísica, mas “certamente é” vicissitude política.

Nietzsche, avesso a qualquer piedade moralizante, enxergaria na crítica à desigualdade uma expressão do ressentimento dos fracos. Ainda assim, mesmo ele, paladino da superação, jamais confundiria grandeza com acumulação. O que combateu não foi a desigualdade natural dos espíritos, mas a domesticação social que impedia a criação de novos valores. O que Nietzsche condenaria é o conformismo, não a aspiração a um mundo mais digno. Seu chamado à transvaloração dos valores poderia ser relido hoje como desafio: seremos capazes de reinventar o mundo sem cair nas armadilhas da moral de rebanho?

Marx, enfim, o mais concreto e humano, o mais humanamente concreto entre eles, oferece não apenas diagnóstico, mas perspectiva histórica. O paraíso universal é uma miragem — mas a justiça, não. “A emancipação dos trabalhadores será obra dos próprios trabalhadores”, escreveu, recusando qualquer salvação vinda de cima. A superação do capitalismo não é promessa de um Éden, mas de uma sociedade em que a exploração não seja norma legal e o trabalho não seja condenação perpétua. Não se trata de criar o céu na Terra, mas de abolir os infernos.

A ideia de paraíso me parece, talvez, uma nostalgia teológica que abandonei há muito, mas que, renitente, se infiltra até mesmo nos meus projetos seculares, pois o desejo que a sustenta é legítimo: cessar o sofrimento imposto, viver com dignidade, não ser instrumento da riqueza alheia. Esse desejo, ainda que inalcançável em sua plenitude, pode — e deve — ser organizado politicamente. Não há um paraíso para todos, mas pode haver um mundo onde o inferno não seja condição para a felicidade de ninguém.

A sociedade socialista, enquanto horizonte, não promete redenção final. Promete apenas a recusa da barbárie como norma, a repartição racional do que é produzido por todos, a extinção da propriedade como forma de poder sobre os outros. Seu projeto não é de perfeição, mas de justiça. E a justiça, essa sim, pode ser compartilhada.

Assim, talvez devamos renunciar à ideia de paraíso como fim. Mas não devemos renunciar à ideia de mundo como casa comum.

Se não nos é dado construir o Éden, ao menos que desativemos os fornos do inferno.

A lucidez exige isso. A empatia e a dignidade também. Afinal, é por elas que a humanidade se sustenta, e é para elas que vale a pena existir.

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